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4 poemas de Mário de Sá-Carneiro, poeta da Geração de Orpheu

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Confira a nossa seleção de poemas de Mário de Sá-Carneiro, esse jovem que era o melhor amigo de Fernando Pessoa!

Mário de Sá-Carneiro, poeta lisboeta, é um dos representantes mais conhecidos da chamada Geração de Orpheu (ou primeira geração modernista).

Sua carreira literária começou quando, aos 24 anos, uniu-se a Fernando Pessoa para colaborar com a revista literária Orpheu, cujo objetivo era divulgar novos ideais estéticos pela Europa.

Juntamente da colaboração com a revista, Mário de Sá-Carneiro publicou algumas obras poéticas, mas a carreira durou pouco: aos 26 anos, em Paris, o poeta cometeu suicídio.

A amizade de Mário com Fernando Pessoa está documentada em muitas cartas que ambos trocaram entre si, como também em cartas de Fernando Pessoa para outros remetentes, que mais de uma vez se referiu ao suicídio de Mário como o suicídio de seu “melhor amigo”.

Esteticamente falando, a poesia deste jovem poeta é de grande inspiração e seus versos são muito expressivos.

Por isso, preparamos uma seleção com 4 poemas de Mário de Sá-Carneiro, para que você conheça um pouco de sua obra.

Aproveite!

Poemas de Mário de Sá-Carneiro

Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar,
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

Pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismastes nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus
Mas fechou-se saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
Eu nunca vi… mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!…)

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar
Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!

Desceu-me nalma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em, uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço…

………………………………………..
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…
……………………………………….

Quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minhalma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dor de ser – quase, dor sem fim…
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir… Onde acoitar-me?…
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar…

Sete Canções de Declínio

1
Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto de Astro
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real livre, sem mastro.

Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada…

2
Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
— Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida!

Desfiles, danças embora
Mal sejam uma ilusão…
Cenário de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante
O amante sem amante,
Ora amado, ora traído…

Lançar os barcos ao Mar
De névoa, em rumo de incerto…
Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.

…E as minhas unhas polidas
Idéia de olhos pintados…
Meus sentidos maquilados
A tintas conhecidas…

Mistério duma incerteza
Que nunca se há de fixar…
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza…

Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro!…

3
Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras
Só as cores são verdadeiras
Siga sempre o festival!

Quermesse — eia! — e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
(Defronte do carrossel,
Eu, em ternura esquecido… )

Fitas de cor, vozearia —
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs — os meus afetos
Com librés de fantasia!

Ser bom… Gostaria tanto
De o ser… Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

— Afetos?… Divagações…
Amigo dos meus amigos…
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisões!

Fiz deles os meus criados,
Com muita pena decerto.
Mas quero o Salão aberto,
E os meus braços repousados.

4
As grandes Horas! — vive-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime —
Sacrifícios são novelas.

“Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto…”
— Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!

E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome.
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!

Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.

Os Grandes, partam — dominem
Sua sorte em suas mãos:
— Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!

Nada nos pode deter;
O nosso caminho é de Astro!
Luto — embora! — o nosso rastro,
Se pra nós Oiro há de ser!…

5
Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens —
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada…

Um baile russo a mil cores.
Um Domingo de Paris —
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores.

Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram —
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram…

Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda…
Saudade que não recorda —
Bola de tênis no ar…

Um leque que se rasgou —
Anel perdido no parque —
Lenço que acenou no embarque
De Aquela que não voltou…

Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços à beira-mar,
Em tardes de céu azul…

Viagem circulatória
Num expresso de vagões-leitos —
Balão aceso — defeitos
De instalação provisória…

Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita …

Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-ha —
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole. . .

Pinturas a “ripolin”,
Anúncios pelos telhados —
O barulho dos teclados
Das Lynotype do Matin…

Manchete de sensação
Transmitida a todo o mundo —
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revolução …

Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo — cheio
De carimbos, lado a lado…

Nobre ponte citadina
De intranquila capital —
A umidade outonal
De uma manhã de neblina…

Uma bebida gelada —
Presentes todos os dias…
Champanha em taças esguias
Ou água ao sol entornada…

Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios…
Porta falsa de mistérios —
Toda uma estante repleta:

Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida —

Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo…
— A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande …

6
Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida …

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na idéia de um país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem…

Parou ali a barca — e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou… — ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo…

…Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos — carícias de âmbar flutuando…

Os palácios de renda e escumalha.
De filigrana e cinza as catedrais —
Sobre a cidade a luz — esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais…

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho — solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada…

Exílio branco — a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos — seu brou-u-ha…
E na praça mais larga, em frágil cera,
Eu — a estátua “que nunca tombará”…

7
Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar…
— Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a Posso ir apanhar!

Distante Melodia

Num sonho de Íris morto a oiro e brasa,
Vem-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule –
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.

Então os meus sentidos eram cores,
Nasciam num jardim as minhas ânsias,
Havia na minha alma Outras distâncias –
Distâncias que o segui-las era flores…

Caía Oiro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me…
– Noites-lagoas, como éreis belas
Sob terraços-lis de recordar-me!…

Idade acorde de Inter-sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz – anseios de Princesa nua…

Balaústres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume…
Domínio inexprimível de Ópio e lume
Que nunca mais, em cor, hei-de habitar…

Tapetes de outras Pérsias mais Oriente…
Cortinados de Chinas mais marfim…
Áureos Templos de ritos de cetim…
Fontes correndo sombra, mansamente…

Zimbórios-panteões de nostalgias,
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar…
Escadas de honra, escadas só, ao ar…
Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias…

Lembranças fluidas… Cinza de brocado…
Irrealidade anil que em mim ondeia…
– Ao meu redor eu sou Rei exilado,
Vagabundo dum sonho de sereia…

Conclusão

Ficamos por aqui!

Esperamos que tenha gostado de nossa seleção de poemas de Mário de Sá-Carneiro.

Se você curtiu esse conteúdo, não deixe de conferir a nossa coletânea de Tomás Antônio Gonzaga.

Um abraço e até a próxima!

Como citar este conteúdo COMO FAZER UM POEMA. 4 poemas de Mário de Sá-Carneiro, poeta da Geração de Orpheu. [S.I.] 2021. Disponível em: https://comofazerumpoema.com/poemas-de-mario-de-sa-carneiro-poesia-orpheu/. Acesso em: 5 jun. 2024.