Saiba o que é encadeamento em poesia, conheça suas características e veja exemplos de sua aplicação!
O encadeamento é um recurso estilístico de grande aplicação na poesia, tanto clássica quanto moderna, por proporcionar alguns efeitos muito interessantes à composição.
Há, porém, certa confusão quanto ao significado do termo, tendo em vista haver três contextos em que é ele comumente empregado.
A seguir, elucidaremos o que é encadeamento em poesia, quais são suas características e daremos exemplos de sua aplicação.
Definição de encadeamento
Em poesia, há três acepções para o emprego do termo encadeamento.
Na primeira e mais frequente dentre elas, encadeamento refere-se à repetição de fonemas, palavras ou frases em versos subsequentes; aqui, o termo equivale à anáfora.
Encadeamento pode-se referir também ao enjambement, embora o emprego deste último, ou de cavalgamento, seja preferido para tal acepção.
Finalmente, encadeamento pode-se referir ao recurso de fazer aparecer a rima de um verso no interior do verso seguinte; neste caso, dizemos que tais rimas são encadeadas.
Aplicação do encadeamento
Desconsiderando o chamado enjambement, já abordado neste site, temos, pois, dois recursos estilísticos diferentes denominados encadeamento em português.
O primeiro é também chamado anáfora e o encontramos, por exemplo, na segunda estrofe do poema Tristeza desconhecida, de Augusto Frederico Schmidt, que replicamos abaixo:
Tristeza de animais com frio e de casebres miseráveis.
Pensei em destinos desconhecidos que me atormentam
Em rostos de homens que não vi e me acompanham
Pensei em emigrantes que ficaram para sempre longe das pátrias, de que eu tenho misteriosas saudades
Pensei em mortos que morreram entre indiferentes
Pensei nas velhas mulheres de todos, humilhadas e sorridentes
Mas não achei o motivo desta tristeza que desceu sobre mim.
Como se vê, nota-se que quatro versos iniciam-se com a palavra “pensei”, o que surte no poema dois efeitos principais.
O primeiro deles é demarcar o início dos versos: exatamente por esse motivo, o encadeamento é muitíssimo empregado em versos livres, nos quais geralmente o poeta faz algo que cumpra um papel semelhante ao da métrica no que tange ao realce da estrutura do poema.
O segundo deles é reforçar a ideia contida nas palavras que abrem o verso; no exemplo acima, a repetição de “pensei”, “pensei”, “pensei” dá a entender que o eu lírico pensou em muitas coisas.
Em retórica, é justamente para isso que se emprega a anáfora: para enfatizar o termo repetido; em poesia, os termos repetidos costumam iniciar os versos, resultando nisto que chamamos encadeamento, e que também pode ser realizado com fonemas ou com grupos de palavras.
No poema Descanso, Augusto Frederico Schmidt utiliza a mesma técnica repetindo a expressão “olho o céu”:
Olho o céu e enfim descanso!
Olho o céu e as estrelas frias
E o vão tormento que me segue sempre
De repente se vai com a leveza do fumo que o vento atira para longe.
O termo encadeamento pode referir-se também a um recurso estilístico semelhante ao uso tradicional das rimas; aqui, contudo, a rima final de um verso completa-se no interior do verso seguinte.
Exemplos abundantes temos nos belíssimos rondós de Silva Alvarenga, como vemos abaixo:
Já serena desde a tarde
Já não arde o sol formoso;
Vem saudoso o brando vento
Doce alento respirar.
Idêntico recurso é empregado nestes versos de João Cardoso, que o mescla com rimas tradicionais:
Byron, Senhora, foi um poeta
D’alma seleta, raça de escol.
— Águia, no imenso plaino a librar-se,
Sem deslumbrar-se, fitava o sol.
Exemplos de encadeamento
Abaixo daremos mais dois exemplos do encadeamento empregado como recurso estilístico em português.
Canção do vento e da minha vida, Manuel Bandeira
Nestes belos versos, Manuel Bandeira, além de empregar o encadeamento (anáfora), utiliza também uma técnica frequente na poesia barroca, denominada pelo espanhol Dámaso Alonso como “semeadura e colheita”.
Consiste ela simplesmente em espalhar certas palavras nos versos para recolhê-las com efeito conclusivo no final.
Na poesia barroca, era frequente a “semeadura” ocorrer nas quadras e a “colheita” nos tercetos de sonetos:
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
Ode marítima, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Neste poema, são inúmeros os trechos em que o encadeamento é empregado com grande efeito expressivo:
Os navios que entram a barra,
Os navios que saem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) —
Todos estes navios abstractos quase na sua ida
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios, navios indo e vindo.(…)
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses.(…)
Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.(…)
Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co’o Perigo a espreitar pelas vigias!
Homens que dormem co’a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!