Saiba o que é enjambement (ou cavalgamento), como utilizá-lo na poesia e veja exemplos de seu uso em grandes poetas!
O cavalgamento (em francês, chamado enjambement) é um recurso estilístico muito utilizado na poesia e que possui alguns efeitos interessantes.
Por muito tempo, foi ele considerado um defeito no verso e condenado por poetas e críticos literários, destacadamente os franceses Malherbe e Boileau, tendo seu uso se limitado a umas poucas obras, quase sempre humorísticas.
No século XIX, porém, o enjambement foi reabilitado por grandes poetas (especialmente franceses), que se rebelaram contra esta tirania que a muitos se afigurava como exigência do bom gosto.
Deste então, o enjambement tem sido utilizado com frequência não só em versos franceses, mas também em outras línguas.
Sendo assim, preparamos este texto para que você saiba exatamente o que é enjambement e como você pode utilizá-lo em seus versos.
Boa leitura!
O que é enjambement (ou cavalgamento)?
Em poesia, quando uma frase tem o sentido interrompido no final de um verso para completar-se apenas no verso seguinte, dizemos que um verso “cavalga” sobre o outro.
O enjambement, portanto, é a ruptura de uma unidade sintática no final do verso, a qual se completa no verso imediato.
São variados os efeitos que se pode tirar do uso inteligente do enjambement, desde a geração de uma suposta instabilidade no verso até a ênfase de determinadas palavras.
Osório Duque-Estrada diz o seguinte a respeito do enjambement:
(…) ele não é um elemento perturbador e anárquico da perfeita estrutura e da harmonia do verso; é, pelo contrario, um elemento artístico de rara capacidade, por meio do qual se pode obter essa maravilhosa conciliação dos contrastes, de que falia Dorchain, e da qual nasce, com uma evidência que se não contesta, o mágico e inabalável prestigio da forma versificada.
Como utilizar o enjambement na poesia?
Embora o enjambement seja um recurso estilístico muito interessante, a interrupção do sentido de uma frase pode soar desagradável em alguns casos.
Osório Duque-Estrada, apoiando-se nas recomendações feitas por Auguste Dorchain em L’art des vers, diz-nos:
(…) convém advertir que o complemento do período, que passa de um verso para outro, está sujeito a duas regras invariáveis:
a) deve ser constituído por uma palavra, ou por uma serie de palavras, de grande importância, para que lhes possa realçar todo o valor o lugar privilegiado em que se acham. (…)
b) deve ser empregado de maneira a não diminuir a impressão da rima antecedente. Convém evitar, nesse caso, a formação de um verso intruso e parasita a que um mal enjambement pode dar lugar, ligando o segundo hemistíquio de um verso com o primeiro do verso imediato (…)
Já Manuel Said Ali faz a seguinte afirmação:
O uso do cavalgamento tem limites. Não se põe no fim do verso artigo, pronome átono, pronome adjunto, numeral adjunto, preposição e certos advérbios e conjunções.
Que podemos concluir destas recomendações?
Em primeiro lugar, fica claro que a ruptura sintática provocada pelo cavalgamento gera um contraste que realça as palavras separadas pelo fim do verso.
Por conseguinte, é necessário que tais palavras sejam importantes para o sentido da composição, caso contrário o realce recairá sobre palavras de pouco valor expressivo, e os versos passarão a impressão de estarem destacando aquilo que não merece destaque.
Em segundo lugar, é bom lembrar que todas as recomendações já feitas em poesia foram por vezes desrespeitadas por bons poetas.
E, por último, salientamos que, ainda que tenham elas sido desrespeitadas ocasionalmente, de modo algum perderam seu valor.
Exemplos de enjambement na poesia
Abaixo listamos alguns exemplos de cavalgamento na poesia (os destaques são nossos):
“Também dos corações, onde abotoam
Os sonhos, um por um céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais…”
(Raimundo Correia)“Amamo-nos um dia,
Um só na vida. Amamo-nos: nascia
A manhã rutilante;
Amamo-nos; brilhava em seu levante
O sol; na plaga infinda
Brilhava o sol: amamo-nos ainda!”
(Alberto de Oliveira)“Desfez-se a nuvem negra e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos que Adamastor contou futuros.”
(Camões)“O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!”
(Cecília Meireles)“E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.”
(Olavo Bilac)
O problema do enjambement na declamação de poemas
Na poesia, poucos são os problemas que geram discussões tão acirradas quanto a maneira correta de se declamar, havendo cavalgamento no fim de um verso.
Este, aliás, é um problema inerente ao problema maior da declamação, e podemos resumi-lo no seguinte: quando há enjambement, elimina-se ou não a pausa no fim do verso?
A opinião que parece mais amplamente disseminada entre aqueles que ensinam literatura e poesia é de que, havendo enjambement, deve-se correr de um verso para outro sem pausa, eliminando-a sumariamente na leitura.
Mas esta é, em suma, a opinião dos mesmos professores que ensinam que a maneira correta de se declamar um poema é orientar-se unicamente por sua pontuação — o que, em português mais claro, significa declamá-lo como se fosse prosa.
É verdade: fazendo isso, o sentido do verso é mais facilmente captado pelo ouvinte; mas também é verdade que fazendo-o destrói-se a estrutura rítmica do poema, tornando impossível ao mesmo ouvinte, por exemplo, diferenciar pelo ouvido um verso branco de um verso livre, e ambos da prosa comum.
O enjambement é um recurso estilístico que visa justamente romper o elo sintático a fim de obter algum efeito expressivo; portanto, a leitura que ignore a pausa no fim do verso estará simplesmente anulando o seu efeito.
Esta, aliás, é a opinião de Rogério Chociay (e de Jean Cohen, e de Maurice Grammont, e de Rafael de Balbín, citados pelo autor), que diz o seguinte em Teoria do verso:
Já que temos de optar, embora consideremos tal fato ainda em discussão nos estudos da teoria do verso, não receamos rejeitar a pura supressão da pausa interversal no encadeamento; primeiro, porque a pausa é, reconhecidamente, um dos apoios essenciais na organização estrófica; segundo, porque os encadeamentos, em sua maioria, retiram efeitos expressivos justamente da quebra de liames sintáticos: se na leitura ou declamação é a sintaxe obedecida, tais efeitos simplesmente não se realizam.
Notamos, finalmente, que tal ruptura sintática operada é apenas artificial, visto que o sentido do verso completa-se no verso seguinte; já seu efeito estilístico é real, e não falha em realçar a expressão quando bem utilizado.
Conclusão
Ficamos por aqui!
Esperamos que você tenha gostado de nosso texto e entendido o que é cavalgamento na poesia.
Se você curtiu esse conteúdo, não deixe de ver as nossas recomendações para escrever um livro de poesia do zero.
Um abraço e até a próxima!