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Litania: o que é, características e exemplos

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Saiba o que é litania em poesia, conheça suas características e veja exemplos de sua aplicação!

As litanias tem sido empregadas desde a Antiguidade nas igrejas e, por seu caráter enfático e melodioso, acabaram adaptadas por poetas a temáticas não necessariamente religiosas.

A seguir, elucidaremos o que é litania em poesia, quais são suas características e daremos exemplos de sua aplicação.

Definição de litania

Tradicionalmente, a litania é uma prece litúrgica estruturada em curtas evocações recitadas alternadamente por um celebrante e uma assembleia.

O celebrante, pois, conduz a oração como instigando a resposta em coro da assembleia, consistindo esta, geralmente, na repetição de uma curta invocação ou petição, como “Rogai por nós”, “Ouvi-nos”, “Livrai-nos”, etc.

As litanias são uma das formas mais populares e antigas de oração, presentes especialmente na tradição judaico-cristã, seja em seus ramos orientais ou ocidentais, e recitadas tanto durante cerimônias quanto durante procissões.

Na poesia, a forma litânica tradicional deu origem a poemas que destacam-se não pela forma, mas pelo tom semelhante e pelas repetições insistentes, podendo apresentar-se metrificados ou não, com ou sem rima.

O termo litania é derivado do grego litaneia, significando literalmente “prece”, “súplica”.

As litanias são também conhecidas no cristianismo como ladainhas ou cantos litânicos.

Aplicação da litania

Para demonstrar como se inserem as litanias na poesia, o melhor é, antes, reproduzir uma litania tradicional.

Abaixo citamos a conhecida Ladainha da Humildade, composta pelo Cardeal Merry del Val, secretário do Estado do Vaticano durante o pontificado de São Pio X:

Ó Jesus, manso e humilde de coração, ouvi-me.
Do desejo de ser estimado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser amado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser conhecido, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser honrado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser louvado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser preferido, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser consultado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser aprovado, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser humilhado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser desprezado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de sofrer repulsas, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser caluniado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser esquecido, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser ridicularizado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser difamado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser objeto de suspeita, livrai-me, ó Jesus.

Que os outros sejam amados mais do que eu, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo.
Que os outros sejam estimados mais do que eu,
Que os outros possam elevar-se na opinião do mundo, e que eu possa ser diminuído,
Que os outros possam ser escolhidos e eu posto de lado,
Que os outros possam ser louvados e eu desprezado,
Que os outros possam ser preferidos a mim em todas as coisas,
Que os outros possam ser mais santos do que eu, embora me torne o mais santo quanto me for possível, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo.

De imediato percebemos que as petições, repetidas, tem um efeito melódico semelhante ao dos estribilhos nalguns poemas.

Nesta litania observamos, também, o uso do encadeamento, recurso estilístico muito empregado na poesia e que produz um efeito destacado, especialmente quando associado a outras reiterações fônicas, como as rimas.

Logo se vê que as litanias, com seu tom de súplica e invocações repetidas, são facilmente adaptáveis à poesia, podendo, nesta, apresentarem outros elementos que contribuam para sua harmonia sonora, tal como o uso de métrica e rima.

Em poesia, pois, o termo litania refere-se a poemas que, literal ou metaforicamente, expressam um tom de súplica ou invocação, valendo-se normalmente de repetições frequentes, como ocorre nas litanias litúrgicas tradicionais.

Exemplos de litania

Abaixo daremos alguns exemplos de aplicação da litania em português:

Litania do Natal, de José Régio

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: “Meu Jesus…”
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: “Ave, Maria!”

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: “Meu Jesus…”
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: “Ave, Maria!”

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: “Meu Jesus…”
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: “Ave, Maria!”

De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: “Meu Jesus…”

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

Litania dos pobres, de Cruz e Sousa

Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,
Cegos, a tatear nas portas.

Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.

Faróis a noite apagados
Por ventos desesperados.

Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos Espaços.

Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.

Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.

Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do Esquecimento.

Perdidas na correnteza
Das culpas da Natureza.

Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!

Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.

Imagens dos deletérios,
Imponderáveis mistérios.

Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.

Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.

Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos Destinos!

O pobres! o vosso bando
É tremendo, é formidando!

Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo…

Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.

Nos areais e nas serras
Em hostes como as de guerras.

Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.

Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.

Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.

Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.

Perde-se além na poeira,
Das Esferas na cegueira.

Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.

Como torres formidandas
De torturas miserandas.

E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.

E de tal forma se arrasta
Por toda a região mais vasta.

E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.

E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece.

Ó Pobres de ocultas chagas
Lá das mais longínquas plagas!

Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.

Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.

Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho…

Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.

Que as vossas almas trevosas
Vêm cheias de odor das rosas.

De torpores, d’indolências
E graças e quint’essências.

Que já livres de martírios
Vêm festonadas de lírios.

Vem nimbadas de magia,
De morna melancolia!

Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.

Balanceadas no letargo
Dos sopros que vem do largo…

Radiantes d’ilusionismos,
Segredos, orientalismos.

Que como em águas de lagos
Boiam nelas cisnes vagos…

Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.

E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.

Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.

Que vestes a pompa ardente
Do velho Sonho dolente.

Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.

Litania para o Natal de 1967, de David Mourão-Ferreira

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo

Como citar este conteúdo COMO FAZER UM POEMA. Litania: o que é, características e exemplos. [S.I.] 2024. Disponível em: https://comofazerumpoema.com/litania-o-que-e-caracteristicas-exemplos/. Acesso em: 26 out. 2024.