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Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade (com análise)

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Conheça o poema Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade, e confira nossa análise!

Poema de sete faces é um poema escrito pelo poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, publicado em seu livro de estreia, Alguma poesia (1930).

Este é um poema que explora a inadaptação e a solidão de um eu lírico identificado com o próprio poeta; ou seja, é um poema de destacado caráter confessional.

As “sete faces” anunciadas no título referem-se a sete faces da poesia de Drummond que, apresentadas num único poema, tornam-no muitíssimo interessante.

Dito isso, preparamos esse texto para que você conheça o Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade. Em seguida, você poderá conferir nossa análise.

Boa leitura!

Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Análise do poema

  • Tipo de verso: livre
  • Número de e tipo de estrofes: 7 estrofes irregulares
  • Número de versos: 29 versos

Poema de sete faces é um poema construído em versos livres, portanto, é um poema que não apresenta um padrão métrico ou rímico em seus versos.

Embora assim seja, Drummond faz o uso ocasional tanto de rima, quanto de métrica, seguindo uma lógica que abordaremos a seguir.

Estrutura do poema

Poema de sete faces possui 29 versos dispostos em sete estrofes irregulares.

Majoritariamente, o poema é construído em versos sem regularidade métrica, rítmica e rímica.

Na segunda estrofe, porém, temos versos metrificados, construídos em octossílabos (verso de oito sílabas poéticas).

Na sexta estrofe, temos o uso de rimas e, também, de métrica; mas, aqui, apenas quatro dos cinco versos da estrofe são metrificados, construídos em heptassílabos (verso de sete sílabas poéticas), que aliados ao uso da aliteração produzem um efeito destacadamente melódico.

Estruturalmente, poderíamos dizer que este é um poema construído da junção de sete unidades independentes, algo que vai de encontro ao sentido do poema; noutras palavras, cada estrofe, quanto à forma e quanto ao sentido, representa uma das “sete faces” anunciadas no título do poema.

Sentido do poema

Poema de sete faces é um poema lírico em que o sujeito poético faz como uma confissão, um desabafo e uma análise de si mesmo.

Este é um poema complexo porque suas estrofes se apresentam aparentemente desconectadas, e dependem de uma correta interpretação do título para a sua compreensão.

A composição é intitulada “Poema de sete faces” porque, nela, o eu lírico nos apresenta sete faces de si mesmo.

Poderíamos dar um passo adiante e dizer que as sete faces do eu lírico representam, também, sete faces da poesia drummondiana.

O poema é dividido em sete estrofes; portanto, cada estrofe representa uma destas faces, particulares tanto em relação à forma, quanto ao sentido.

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Assim, temos versos intimistas, versos quase em prosa, metrificados, com e sem rima, melancólicos, lúdicos, em tom de prece, e por aí vai.

É um poema que, em suma, exibe a multiplicidade do poeta; e, para interpretá-lo, é interessante que analisemos cada uma destas “faces” individualmente.

Primeira face

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Esta estrofe, que serve de abertura ao poema e é composta em versos livres, talvez seja a mais importante e pode suscitar algumas dúvidas.

Em primeiro lugar, vemos que o eu lírico possui o nome Carlos, o que nos revela uma identificação com o nome do próprio poeta: portanto, daqui em diante sabemos que o poema tem caráter autobiográfico e confessional.

A expressão “anjo torto” pode ser enxergada como uma alusão ao conceito de anjo caído, representado na Bíblia para referir-se a um anjo rebelde, inconformado, que desafiou a ordem divina e caiu em desgraça.

Esta interpretação vai de encontro ao que, no poema, vemos o tal anjo recomendar ao eu lírico: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

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“Gauche” é um vocábulo francês que, neste contexto, pode ser interpretado como desajustado, inadequado.

Portanto, o anjo que “vive na sombra”, talvez com alguma ironia, parece prenunciar no eu lírico um ser também torto, canhestro, que não se adaptará ao mundo.

Este anjo, contudo, o incentiva a sê-lo como é, o que pode simbolizar tanto um “mau conselho” que viria a determinar a sorte e a personalidade do eu lírico, quanto uma espécie de chamado para que o eu lírico fosse de fato diferente, singular, controverso, e não se conformasse com as normas estabelecidas.

Segunda face

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

Após uma estrofe fortemente íntima, escrita em primeira pessoa, temos esta segunda estrofe, que nos choca por parecer descolada da primeira.

Aqui, temos uma descrição feita por um observador que parece distanciado daquilo que descreve; algo drasticamente diferente da primeira estrofe, em que o eu lírico dramatiza o seu próprio nascimento.

Percebemos, também, que há uma mudança na forma: temos, aqui, versos metrificados.

Se não soubéssemos que o objetivo do poema é justamente demonstrar sete “faces” do eu lírico, aqui ficaríamos confusos; como o sabemos, é assim que devemos enxergar esta estrofe: como uma nova face do eu lírico.

Estes versos, que fazem referência ao desejo sexual “dos homens”, em verdade, fazem referência ao desejo sexual do narrador.

Ao dizer que “a tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos”, o narrador, de forma oblíqua, confessa-nos que talvez fosse feliz, não fosse refém dos próprios instintos, que o conduzem a uma busca sexual desenfreada.

Terceira face

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

Na terceira estrofe, retornamos ao verso livre, mas o eu lírico mantém a postura de observador.

Este observador, contudo, já não é tão descolado daquilo que narra, nem adota um tom oblíquo, ameno e alheio: temos, portanto, uma nova face.

Aqui, o narrador descreve muitas e variadas “pernas”, que representam muitas e variadas pessoas que lhe estão em redor; é como se constatasse que há, além dele, uma multidão de outros indivíduos no mundo.

Diante desta multidão, ele se mostra aflito, como se não compreendesse a razão de existirem mais pessoas além de ele próprio.

Seus olhos, contudo, “não perguntam nada”, o que pode nos sugerir uma indiferença e um distanciamento para com a realidade, postura presumível para o “gauche” anunciado na primeira estrofe.

Quarta face

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Nesta quarta estrofe, retornamos ao estilo de narração objetiva da segunda; aqui, porém, não há métrica, e os versos parecem-nos quase prosa.

São versos crus, aparentemente “sem poesia”, posto que, se lidos isoladamente, parecem limitar-se a uma simples descrição de um homem qualquer.

Sabemos, porém, que é este o Poema de sete faces, e esta quarta estrofe está a representar mais uma face do eu lírico.

Assim, embora tenham os versos um quê de mistério, não podemos deixar de interpretar esse tal homem como o próprio eu lírico, especialmente quando sabemos que, na época em que o poema foi escrito, Drummond usava óculos e bigode.

O eu lírico, portanto, confessa-se alguém introvertido, sério, silencioso e de poucos amigos; o que é uma revelação de seu temperamento e de sua solidão.

A maneira como o eu lírico se descreve, isto é, como um homem que existe detrás do bigode, sugere-nos que haja uma barreira entre o seu mundo interior e exterior ou, noutras palavras, que ele veste uma máscara que esconde o seu íntimo das outras pessoas.

Quinta face

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Nesta quinta estrofe, temos o ápice da dramaticidade do poema, e o eu lírico expressa não somente o lamento, mas o desespero decorrente de sua inadaptação ao mundo, sob a forma de queixa ao próprio Deus, alegando-se abandonado.

A forma dos versos continua livre, e o curioso é notar que, embora possamos notar a profundidade destes versos e a força do sentimento expresso, a queixa à divindade sai despojada de uma única exclamação.

Aliás, é exatamente este o estilo com que Drummond preferencialmente expressava suas emoções mais íntimas e intensas: camuflando-as num tom sóbrio — algo que, sem dúvida, causa um forte efeito, porque escancara um contraste entre o que está sendo dito e a maneira com que se diz.

Esta quinta face, pois, é a face do eu lírico que manifesta o total desconsolo perante o seu caráter falível, “fraco”, não divino e fracassado; além disso, leva ao paroxismo o sentimento de abandono, pois dificilmente se pode expressá-lo de forma mais potente do que quando alguém se declara “abandonado por Deus”.

Sexta face

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Esta sexta estrofe parece evidenciar a postura do eu lírico perante o seu drama já exposto e cujo ápice acabamos de ultrapassar.

Vemos que ela começa com uma repetição de palavras típica de cantigas, técnica até então não explorada pelas “faces” anteriores.

Percebemos, também, que nesta estrofe há uso de rimas, e que quatro de seus cinco versos são metrificados; o verso do meio, destoante, poderia ser interpretado como a inadaptação do eu lírico à forma ou à tradição.

Ele, dizendo que se se chamasse Raimundo, “seria uma rima, não seria uma solução”, sugere-nos que a poesia, embora seja utilizada para expressar seus problemas, não os resolve.

É uma afirmação potente, que se destaca uma vez que inserida no meio de uma estrofe em que o eu lírico parece brincar com as palavras.

Sétima face

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Finalmente, a sétima e última face do poema.

Quanto à técnica, se o eu lírico, na última estrofe, rompeu com o discurso lógico-objetivo e a semântica com “mundo mundo vasto mundo”, aqui é a sintaxe que é deixada de lado, visto que o eu lírico dispensa o uso de vírgulas.

Quanto ao sentido, esta estrofe faz um belo fechamento e parece justificar a aparente ilogicidade, o caráter desconexo e também a emotividade das estrofes anteriores: o eu lírico se confessa emocionado, pela lua e pelo conhaque.

Assim, num sentido mais literal, poderíamos interpretar esta estrofe como a justificativa para a excentricidade do poema: o álcool e a lua, de uma só vez, estimularam-lhe a confissão e turvaram-lhe a lucidez.

Sabemos, contudo, que a estrofe é também uma “face”, e é esta a que se assume inebriada e comovida diante do espetáculo de existir.

Sobre Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902.

Filho de proprietários rurais, ele passou a primeira infância no interior desta cidade, estudando no Grupo Escolar Dr. Carvalho Brito.

Em 1916, foi a Belo Horizonte iniciar seus estudos no internato e colégio Arnaldo.

Em 1918, mudou-se para Nova Friburgo (RJ) para estudar no colégio Anchieta. Ali permaneceu por um ano, acabando expulso por “insubordinação mental”, após ter um atrito com seu professor de português.

Em 1923, iniciou o curso de Farmácia na Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte, concluindo-o em 1925. Neste mesmo ano, foi um dos fundadores do periódico modernista A Revista.

Em 1926, embora formado farmacêutico, foi a Itabira para trabalhar como professor de geografia e português, voltando a Belo Horizonte no mesmo ano, para ser redator no Diário de Minas.

Em 1930, Drummond, de forma independente, publicou seu primeiro livro, Alguma poesia. O reconhecimento literário só viria, porém, em 1942, com a publicação de Poesias.

Drummond exerceu em vida alguns cargos públicos e atuou, a princípio, como auxiliar de gabinete da Secretaria do Interior. Depois assumiu a chefia do gabinete do Ministério da Educação. Entre 1945 e 1962 atuou como funcionário da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), onde se aposentou como chefe de seção.

O poeta casou-se uma e foi pai duas vezes, falecendo no Rio de Janeiro, em 1987, apenas doze dias após à morte de sua filha.

Obras de Carlos Drummond de Andrade

Poesia

  • Alguma poesia (1930)
  • Brejo das almas (1934)
  • Sentimento do mundo (1940)
  • Poesias (1942)
  • A rosa do povo (1945)
  • Novos poemas (1948)
  • Claro enigma (1951)
  • Viola de bolso (1952)
  • Fazendeiro do ar (1954)
  • A vida passada a limpo (1955)
  • Lição de coisas (1962)
  • Versiprosa (1967)
  • Boitempo (1968)
  • A falta que ama (1968)
  • Nudez (1968)
  • As impurezas do branco (1973)
  • Menino antigo (1973)
  • A visita (1977)
  • Discurso de primavera e algumas sombras (1977)
  • O marginal Clorindo Gato (1978)
  • Esquecer para lembrar (1979)
  • A paixão medida (1980)
  • Caso do vestido (1983)
  • Corpo (1984)
  • Eu, etiqueta (1984)
  • Amar se aprende amando (1985)
  • Poesia errante (1988)
  • O amor natural (1992)
  • Farewell (1996)

Prosa

  • Confissões de Minas (1944)
  • Contos de aprendiz (1951)
  • Passeios na ilha (1952)
  • Fala, amendoeira (1957)
  • A bolsa & a vida (1962)
  • A minha vida (1964)
  • Cadeira de balanço (1966)
  • Caminhos de João Brandão (1970)
  • O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972)
  • De notícias & não notícias faz-se a crônica (1974)
  • 70 historinhas (1978)
  • Contos plausíveis (1981)
  • Boca de luar (1984)
  • O observador no escritório (1985)
  • Tempo vida poesia (1986)
  • Moça deitada na grama (1987)
  • O avesso das coisas (1988)
  • Autorretrato e outras crônicas (1989)

Conclusão

Ficamos por aqui!

Esperamos que você tenha gostado de nossa análise do Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade

Se você curtiu esse conteúdo, não deixe de conferir a nossa seleção de poemas de Mário Quintana.

Um abraço e até a próxima!