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Poema Tabacaria, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) (com análise)

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Conheça o poema Tabacaria (“Tenho em mim todos os sonhos do mundo”…), de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) e confira nossa análise!

Tabacaria é um poema de Fernando Pessoa, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos e disponível no volume intitulado Poesias de Álvaro de Campos.

O poema é um dos mais conhecidos de Fernando Pessoa e aborda temas como o sentimento de vazio e a angústia existencial.

Uma de suas frases, “tenho em mim todos os sonhos do mundo”, apresentada já na primeira estrofe do poema, tornou-se uma das mais célebres da língua portuguesa.

Dito isso, preparamos esse texto para que você conheça o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa. Em seguida, você poderá conferir nossa análise.

Boa leitura!

Tabacaria, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas –,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!

Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Análise do poema

  • Tipo de verso: livre
  • Número e tipo de estrofes: 20 estrofes irregulares
  • Número de versos: 167 versos

Tabacaria é um poema construído em versos livres, portanto, é um poema que não utiliza metrificação nem rima.

O poema pode ser resumido numa profunda reflexão existencial do eu lírico, que confronta sua angústia interior com o mundo exterior.

Estrutura do poema

Tabacaria possui 167 versos divididos em 20 estrofes irregulares.

O poema não utiliza metrificação nem rimas de nenhuma espécie.

Embora Tabacaria não apresente um padrão rítmico, no sentido musical da palavra, a velocidade do discurso é trabalhada de maneira muito interessante.

Após uma primeira estrofe em que os versos são apresentados como se fossem máximas, portanto, sugerindo uma leitura pausada, a extensão dos versos subitamente aumenta e o discurso parece acelerar-se, como expressando um turbilhão de pensamentos.

Muitos elementos contribuem para este efeito, como, por exemplo, a grande quantidade de versos longos sem vírgula ou qualquer tipo de pontuação.

Tal efeito é também reforçado pelas estrofes que, entre parênteses, sugerem que o eu lírico debate consigo mesmo, intercalando o raciocínio objetivo com sentimentos que se lhe vão manifestando ao longo do poema.

Sentido do poema

Tabacaria é um poema complexo em que o eu lírico, após expressar uma ideia inicial, mergulha numa profunda reflexão que vai, aos poucos, adicionando elementos ao raciocínio que se desenvolve.

Para analisá-lo, temos de dividi-lo em partes, a ver quais ideias se vão apresentando no discurso.

Desilusão e contraste

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

O poema é aberto com estes quatro versos e fornece-nos algumas informações.

Em primeiro lugar, descobrimos que o eu lírico discursa em primeira pessoa.

Ad Curso de Poesia

Em seguida, percebemo-lo numa desilusão completa, ao dizer “não sou nada”, “nunca serei nada” e “não posso querer ser nada”.

“Não sou nada” expressa a consciência da própria insignificância; “nunca serei nada” a impotência perante tal situação; “não posso querer ser nada” a amarga conclusão de que o próprio desejo de “ser alguma coisa” é-lhe vetado.

Estes três versos exprimem um desencanto total para com a vida e para consigo mesmo: o eu lírico se nos apresenta prostrado diante de sua insignificância e sua ausência de possibilidades.

Contudo, diz-nos o quarto verso: “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

Quer dizer: apesar de concluir definitivamente que não irá e que não pode sequer cogitar concretizá-los, confessa o sujeito poético ter “todos os sonhos do mundo”.

Com estes versos, o problema central de Tabacaria é-nos exposto: a angústia de alguém que quer tudo e não pode tê-lo.

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Incapacidade de viver

Mais adiante no poema, o eu lírico nos diz:

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

(…)

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Nestes versos, é reforçado o contraste exposto na primeira estrofe, entre o querer e o poder, a realidade e o sonho.

Há, porém, um elemento novo, expresso nos versos “Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade” e “Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer”.

Tais afirmações sugerem-nos que o eu lírico, tomando consciência da própria realidade, isto é, dos sonhos impossíveis que alimenta, já não pode prosseguir na vida como as outras pessoas.

Ele vê-se “vencido”, ou seja, assumiu a própria derrota; vê-se “lúcido”, ou seja, consciente de seu dilema; vê-se “perplexo” e “dividido” entre a Tabacaria e a “sensação de que tudo é sonho”.

Aqui, vemos pela primeira vez a palavra Tabacaria, que serve de título ao poema. Claramente, a Tabacaria representa, para o eu lírico, a realidade física, tangível, palpável; realidade que contrasta diretamente com suas idealizações.

Derrota e descrença

O poema prossegue com o sujeito poético reforçando a sua derrota para com a vida:

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.

(…)

Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;

(…)

Crer em mim? Não, nem em nada.

Nestes trechos, vemos que os fracassos, as decepções com a vida e a ausência de possibilidades futuras servem de premissas para que o eu lírico caia em descrença.

Assim, após o primeiro momento, o da consciência e confissão da derrota (“Falhei em tudo”), desenha-se a conclusão de que o esforço é inútil, acreditar é inútil, posto que o destino e a natureza impõem-se sobre os anseios do eu lírico.

Ele é, pois, absolutamente insignificante perante o todo e não há saída para a sua situação.

Contrastes e mais contrastes

Desde a primeira estrofe, o eu lírico trabalha o contraste entre realidade e sonho.

Ele o faz, porém, de forma lúcida, apresentando-nos um discurso que, embora conturbado, parece apoiar-se sobre um raciocínio lógico.

Mas chega um momento em que ele como se perde do que diz e desloca-lhe a atenção para uma cena que vê, provavelmente de sua janela.

Pouco antes, ele fazia a seguinte afirmação:

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,

Tais versos parecem dizer que, neste momento, pende o eu lírico para o lado irracional de seu dilema, isto é, de que o sonho é que é a verdadeira realidade, enquanto o mundo real é “opaco” e “alheio”.

Logo em seguida, ele divaga:

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mais uma vez, contrastes; seja do eu lírico que abandona o raciocínio diante de uma cena real, seja da menina real despreocupada com a metafísica a comer chocolates.

Olhando para a menina, o eu lírico mais uma vez constata a sua incapacidade de simplesmente viver como todos vivem, inclusive a pequena.

Inevitabilidade da morte e indiferença do universo

Mais adiante, o eu lírico, novamente diante de uma cena real, narra-a e em seguida reflete:

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Já neste trecho do poema, percebemos manifesta em diversas ocasiões esta que é uma característica marcante de Fernando Pessoa: a utilização de uma cena banal como motivação para uma reflexão filosófica profunda.

O eu lírico, pois, vê da janela o dono da Tabacaria, vê-o a fazer qualquer movimento, qualquer banalíssima ação como as que podemos ver todos os dias de qualquer janela.

Então, conclui ele que ambos morrerão, que tudo morrerá e tudo está sempre fadado a morrer neste universo que parece não se importar com nossos sentimentos, este universo que, contudo, continua a criar e destruir coisas, coisas simultaneamente inúteis e misteriosas.

Aqui, percebemos que mais uma vez oscila o eu lírico e deixa-se levar pelo pensamento.

A realidade se impõe

Após muitas reflexões, retorna novamente a realidade, desta vez para rematar o poema:

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Daqui em diante, cessam as reflexões filosóficas e parece, com isso, a realidade se impor sobre as divagações do eu lírico, quer dizer, parece a realidade ter vencido o devaneio.

O eu lírico, então, aceita-a e recupera-lhe a praticidade, o que parece alegrá-lo:

E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Então é isso? O eu lírico venceu, pois, sua severa angústia existencial?

Há algo cômico nesta cena: o eu lírico, logo após afundar-se numa profunda reflexão filosófica, vence-a entregando-se ao utilitarismo mais raso; é como se ele concluísse: “mais vale encher a barriga que filosofar”, ou ainda: “filosofia é resultado de barriga vazia”.

Portanto, inspirado por um homem qualquer que entra numa tabacaria, o derrotado, o descrente, o incapaz de viver e adaptar-se à realidade das coisas, o sonhador incurável, o angustiado fatalista parece finalmente encontrar-se!

E, abaixo, os versos que fecham o poema:

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Aqui, muitas coisas interessantes e um final um tanto enigmático.

Por algum motivo, ou melhor, como conduzido por uma força superior, o Esteves voltou-se e viu o eu lírico que, neste momento de aceitação da realidade, dá-lhe um adeus.

Realmente, um adeus: mas não ao Esteves (sem metafísica), e sim ao brevíssimo instante em que pensou ser capaz de viver como o Esteves ou o dono da Tabacaria.

Então o universo reconstruiu-se e reconstruiu-o “sem ideal nem esperança”, ou seja, retornou-lhe bruscamente ao estado em que iniciou o poema.

O dono da Tabacaria sorri, representando seja uma ironia do universo, seja uma compreensão misteriosa e inexplicável, seja um estado absolutamente alheio a qualquer preocupação que lhe exceda a tabuleta.

Pela última vez, o contraste entre duas naturezas que nada parecem ter em comum e a confrontação com o sorriso leve e despreocupado que não pode exibir.

“Tenho em mim todos os sonhos do mundo”…

A temática dos sonhos é recorrente na obra de Fernando Pessoa, a despeito de qual heterônimo esteja se manifestando.

Sonhar, porém, na acepção comumente empregada por Pessoa, não se limita àquilo que fazemos por vezes enquanto dormimos: sonhar é imaginar, é vivenciar o universo infinito da imaginação.

Quando Álvaro de Campos nos diz que “tenho em mim todos os sonhos do mundo”, quer ele dizer que seu universo imaginativo é ilimitado, que pode ele criar em mente tudo quanto é possível — e Pessoa certamente diria que também o impossível.

A exaltação dessa dimensão imaginativa da vida foi feita por Pessoa em incontáveis ocasiões.

Outro de seus heterônimos, Bernardo Soares, faz em prosa uma verdadeira ode ao sonhar no imortal Livro do desassossego, brindando-nos com frases como esta:

Nunca durmo: vivo e sonho, ou, antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida.

Ou ainda:

Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer-me na visão do seu movimento.

Parece, assim, Pessoa querer lembrar-nos o tempo inteiro de que os sonhos, isto é, a imaginação e a vida interior são uma porta fantástica para enriquecer nossa experiência e nosso desenvolvimento pessoal.

Sobre Fernando Pessoa

Fernando Pessoa foi um poeta e escritor português que nasceu em Lisboa, em 13 de junho de 1888.

Sua vasta obra contempla poemas, escritos filosóficos, sociológicos, astrológicos, ensaios de crítica literária, entre outros.

Em vida, Fernando Pessoa trabalhou como tradutor, correspondente estrangeiro, crítico literário e colaborador em revistas literárias, recusando alguns empregos para que pudesse se dedicar à literatura.

O poeta chegou a matricular-se na Faculdade de Letras de Lisboa, abandonando-a sem concluir o curso.

Sem dúvida, a grande excentricidade de Fernando Pessoa está em seus conhecidos heterônimos, que não são senão variações de sua própria personalidade, mas construídos com engenho incrível.

O poeta não se limitou a criar personalidades para seus heterônimos, e deu luz a uma história de vida completa para cada um deles, com data de nascimento adequando-se aos respectivos horóscopos, temperamento, estilo de vida, estilo literário e até data de óbito.

Fernando Pessoa faleceu em 30 de novembro de 1935, deixando em seu espólio cerca de 25 mil páginas de textos, que vêm sendo publicados lentamente desde então.

Os heterônimos de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa ficou famoso por escrever sob o nome de heterônimos.

Foram muitas e muitas personalidades criadas por ele, e abaixo fazemos um resumo biográfico das quatro mais famosas:

  • Álvaro de Campos: nascido em Tavira, em 1890. Possuía temperamento emotivo e, por isso mesmo, é às vezes eufórico e exaltado. Viajou para a Escócia e para o Oriente, educou-se na Inglaterra e formou-se engenheiro.
  • Alberto Caeiro: nascido em Lisboa, em 1889, e falecido de tuberculose. Escrevia poemas, mas não possuía educação formal. Era denominado mestre por Álvaro de Campos, que o colocava como precursor e ícone do movimento literário que ficou conhecido em Portugal como Sensacionismo. Distinguia-se pela racionalidade e objetividade, e tinha uma vida ligada ao campo e aos rebanhos.
  • Ricardo Reis: nascido no Porto, em 1887. Era médico e, segundo nos conta Pessoa, “está frequentemente no Brasil”.
  • Bernardo Soares: era um “ajudante de guarda-livros” lisboeta, autor do famosíssimo Livro do desassossego. Era considerado um “semi-heterônimo” por Fernando Pessoa, porque, nas palavras do poeta, “não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade”.

Obras de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa publicou poucas obras em vida e, até hoje, possui parte de seus manuscritos inéditos.

Seus textos em poesia e prosa já foram editados sob muitos títulos, e abaixo destacamos algumas de suas obras mais conhecidas:

  • 35 sonnets (1918)
  • Antinous (1918)
  • English poems (1921) — em três volumes
  • Mensagem (1934)
  • A Nova Poesia Portuguesa (1944)
  • Poemas Dramáticos (1952)
  • Cartas de Amor de Fernando Pessoa (1978)
  • Sobre Portugal (1979)
  • Textos de Crítica e de Intervenção (1980)
  • Livro do desassossego (1982)
  • Obra Poética de Fernando Pessoa (1986)
  • Primeiro Fausto (1986)

Conclusão

Ficamos por aqui!

Esperamos que você tenha gostado de nossa análise do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa.

Se você curtiu esse conteúdo, não deixe de ver a nossa seleção de poemas sobre Portugal.

Um abraço e até a próxima!