Conheça o poema Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto, e confira nossa análise!
Tecendo a manhã é um poema escrito pelo poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, que está disponível em seu volume intitulado A educação pela pedra (1966).
Este poema, como nos conta Antônio Carlos Secchin no prefácio de Poesia completa (2020), levou oito anos e mais de trinta e duas versões para ser concluído.
Hoje, ele é provavelmente o poema mais conhecido e mais amplamente divulgado deste poeta brasileiro.
Dito isso, preparamos esse texto para que você conheça o poema Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto. Em seguida, você poderá conferir nossa análise.
Boa leitura!
Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Análise do poema
- Tipo de verso: livre
- Número de estrofes: 2 estrofes: uma décima e um sexteto
- Número de versos: 16 versos
Tecendo a manhã é um poema construído em versos livres, portanto, é um poema que não utiliza metrificação.
O poema pode ser resumido a uma comparação entre a maneira pela qual uma manhã e um poema são “tecidos”.
Estrutura do poema
Tecendo a manhã possui dezesseis versos divididos em duas estrofes: uma décima e um sexteto (ou sextilha).
O poema não utiliza metrificação e não trabalha o ritmo da maneira como este é comumente trabalhado em poesia.
Quanto às rimas, o poema também as utiliza de maneira não tradicional: os versos pares da primeira estrofe encerram-se alternando “galos” e “galo”; já na segunda estrofe, vemos os três primeiros versos terminados em palavras de sonoridade semelhante, e o quarto verso rimando com o sexto (no caso, os versos quatorze e dezesseis do poema).
As repetições, aliterações e encadeamentos fazem com que o poema passe a impressão de estar sendo “tecido”, isto é, sendo construído através de movimentos repetitivos que são cuidadosamente separados por pausas demarcadas pela pontuação e pelo fim dos versos.
Falaremos mais sobre a estrutura do poema ao analisar-lhe os recursos expressivos.
Sentido do poema
Tecendo a manhã é um poema linguisticamente complexo e, para entendê-lo, precisamos dividir nossa análise em etapas.
Em primeiro lugar, analisaremos o que o poema diz literalmente, e em seguida abordaremos alguns dos recursos expressivos utilizados para reforçar a ideia expressa pelo poema.
O poema é intitulado “Tecendo a manhã”, portanto, podemos imaginá-lo a descrever como uma manhã é “tecida”, isto é, como ela é construída, de quais elementos ela é composta; o verbo “tecendo”, porém, visto que é um gerúndio, sugere-nos que a manhã será “tecida” gradualmente à medida que o poema se desenvolve.
Assim o poema começa:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
A ideia central do poema pode ser resumida nos dois primeiros versos:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
Aqui, podemos inferir, primeiro, que o trabalho de um galo é dependente do trabalho de outros galos para ser efetivo; segundo, que a manhã é uma construção coletiva.
Naturalmente, “galo” e “manhã” podem (e devem) ser interpretados metaforicamente, e disso falaremos mais adiante.
Percebemos, ainda, que o primeiro verso faz alusão ao dito popular “uma andorinha só não faz verão”.
Os versos seguintes dessa estrofe fazem o que ficou sugerido pelo título: há uma descrição de como a manhã é “tecida”, ou melhor, o eu lírico “tece” gradativamente a manhã através de palavras, que vão formando uma unidade à medida que o poema avança.
Vem a segunda estrofe:
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Literalmente, esta estrofe descreve um movimento em que uma tela transforma-se numa tenda cujo toldo “plana livre de armação”.
Na estrofe anterior, o eu lírico sugeriu uma manhã tecida a partir de “uma teia tênue”, composta de “fios de sol” de “gritos de galo”.
Nesta estrofe, a “teia tênue” se encorpa em “tela” para em seguida se erguer em “tenda”: aqui, obviamente, são metáforas que o eu lírico utiliza para descrever o desenvolvimento gradual da manhã, exposta desde o primeiro verso como construção coletiva.
Após todo o trabalho descrito no poema, a manhã, “toldo de um tecido tão aéreo”, liberta-se e “se eleva”.
Assim, o poema é encerrado com a ideia de manhã foi finalmente “tecida”.
Tecendo a manhã, portanto, nesta interpretação literal, é um poema que descreve a maneira pela qual uma manhã é construída.
Precisamos, porém, aprofundar nossa leitura do poema para que possamos apreciá-lo melhor.
A metalinguagem em Tecendo a manhã
Tecendo a manhã é um poema que permite e exige leituras simultâneas à literal que acabamos de fazer.
Dissemos anteriormente que “galos” e “manhã” podem ser interpretados como metáforas.
Neste poema, o eu lírico utiliza metaforicamente a “construção da manhã” para insinuar, ao mesmo tempo, a construção de um poema.
“Galos” e “manhã”, portanto, podem ser interpretados como “palavras” e “poema”, ou seja, assim como uma manhã precisa do trabalho de muitos galos para ser “tecida”, um poema precisa do trabalho coletivo de palavras.
O eu lírico, assim, constrói a manhã ao passo que constrói o próprio poema, e constrói o poema abordando o processo construtivo de um poema (por isso a metalinguagem).
É muito interessante notar como a pontuação é utilizada de forma a corroborar a ideia central do poema.
Nos primeiros dois versos, lemos:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
Aqui, a ideia central é reforçada pelo fato de que há um ponto final no término do segundo verso: parece este dístico querer representar visualmente o isolamento deste “galo sozinho” que “não tece uma manhã”.
Em seguida, temos oito versos nos quais sumariamente é descrito o canto de um galo, que soma-se ao canto de outro galo, que soma-se ao canto de mais um galo e assim por diante.
É como se o eu lírico quisesse expressar que, num poema, uma palavra puxa outra palavra que puxa mais uma até um ponto em que, finalmente, forma-se uma unidade chamada poema.
Ainda visualmente notamos que, para expressar essa ideia, o eu lírico entremeia esses oito versos de vírgulas e pontos e vírgulas (como se fossem nervuras que demarcassem feixes no “tecido” do poema), colocando um ponto final apenas no fim do último verso da estrofe.
É como nota argutamente Antônio Carlos Secchin:
A partir do terceiro verso a solidão é rompida. A sintaxe do poema faz-se de novo solidária, porque não se isola nem se encerra: um galo entrelaça seu fio ao de um outro, enquanto uma frase se conecta à frase anterior e se lança à seguinte. Omite-se o verbo que daria caráter conclusivo à frase, flagrada a meio caminho pelo poeta, como o fio do galo fora apanhado por outro, num processo de convergência entre a matéria que está sendo expressa, o nascer do dia, e a forma do poema, réplica do que se narra. Há dois fios que se encontram, um de luz e outro de sintaxe, no discurso de um poeta que constrói ao mesmo tempo a manhã e o texto.
Recursos estilísticos em Tecendo a manhã
Para finalizar nossa análise de Tecendo a manhã, não podemos deixar de mencionar alguns recursos estilísticos que, além de serem fundamentais para a expressão da ideia central do poema, podem dificultar sua interpretação, caso não sejam compreendidos corretamente.
Em primeiro lugar destacamos a aliteração dos fonemas /t/ e /r/, este último presente em muitos encontros consonantais de palavras como “sempre”, “grito”, “outros”, “cruzam”, “entre”.
Praticamente todos os versos possuem tais fonemas, que nos sugerem o atrito resultante do ato de tecer, isto é, do entrelaçamento dos fios de um tecido.
É por isso, aliás, que o poeta preferiu referir-se ao “grito dos galos” em vez de ao “canto dos galos”; pois a palavra “canto” não ofereceria o mesmo valor expressivo, posto que não possui nenhum encontro consonantal envolvendo o fonema /r/.
Em seguida, notamos o uso das elisões feito pelo eu lírico que, sem dúvida, podem dificultar a compreensão do poema.
Os versos três e quatro, por exemplo, formam o período “De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro”; um período ilógico se analisado separadamente do texto e que somente faz sentido se interpretado como abaixo (em parênteses, estão as partes omitidas do texto):
(Precisará sempre) de um (galo) que apanhe esse grito que ele (gritou) e o lance a outro
Salientamos, também, que o verbo no pretérito perfeito é omitido intencionalmente, como notou Antônio Carlos Secchin no trecho em que anteriormente citamos, com a finalidade de impedir que a frase tenha caráter conclusivo e, assim, estenda-se no ato de “tecer”.
Por fim, destacamos o encadeamento de frases, o cavalgamento e a reutilização de palavras de um período anterior no período seguinte, que ocorrem em todo o poema e reforçam a ideia de construção coletiva, a ideia de que um período constrói-se a partir de outro e nunca isoladamente, havendo portanto nas palavras do poema uma relação de dependência e unidade.
Sobre João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro de 1920, em Recife, na casa de seu avô materno.
Pelo lado paterno, era primo de Manuel Bandeira; pelo lado materno, de Gilberto Freyre.
Até os dez anos, viveu em engenhos de açúçar, mudando-se juntamente da família para Recife, em 1930, onde fez os cursos primário e secundário no Colégio dos Irmãos Maristas.
Em 1942, mudou-se para o Rio de Janeiro, publicando neste mesmo ano sua primeira obra poética, Pedra do sono.
Entrou para o serviço público em 1943 e, a partir de 1946, trabalhou para o Departamento Cultural do Itamaraty, onde seguiu com a carreira de diplomata.
Graças à carreira diplomática, residiu em diversas cidades durante a sua vida.
Recebeu vários prêmios literários e, em 1968, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tomando posse da cadeira 37 no ano seguinte.
Faleceu, no Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 1999.
Obras poéticas de João Cabral de Melo Neto
- Pedra do sono (1942)
- Os três mal-amados (1943)
- O engenheiro (1945)
- Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947)
- O cão sem plumas (1950)
- O Rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à Cidade do Recife (1954)
- Pregão turístico (1955)
- Quaderna (1960)
- Dois parlamentos (1961)
- A educação pela pedra (1966)
- Museu de tudo (1975)
- A escola das facas (1980)
- Auto do frade (1983)
- Agrestes (1985)
- Poesia completa (1986)
- Crime na calle Relator (1987)
- Sevilha andando (1989)
- Primeiros poemas (1990)
Conclusão
Ficamos por aqui!
Esperamos que você tenha gostado de nossa análise do poema Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto.
Se você curtiu esse conteúdo, não deixe de conferir o que escrevemos sobre Ritmo, de Mário Quintana.
Um abraço e até a próxima!