Conheça o poema Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem, de Gregório de Matos, e confira nossa análise!
Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem é um poema escrito pelo poeta brasileiro Gregório de Matos, disponível em seu volume intitulado Poemas escolhidos de Gregório de Matos (Companhia das Letras, 2011).
Este é um poema que lembra um pouco do que é feito em Amor fiel, e é um belo exemplo de poesia lírico-amorosa do autor.
Dito isso, preparamos esse texto para que você conheça o poema Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem, de Gregório de Matos. Em seguida, você poderá conferir nossa análise.
Boa leitura!
Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem, de Gregório de Matos
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:Tu, que em um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo em cristais aprisionado;
Quando cristal em chamas derretido.Se és fogo como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
Análise do poema
- Tipo de verso: decassílabo rimado
- Número e tipo de estrofes: 4 estrofes: 2 quadras e 2 tercetos (soneto)
- Número de versos: 14 versos
Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem é um soneto construído em decassílabos rimados, portanto, é um poema que utiliza metrificação e rima.
O poema, quanto à forma, enquadra-se no padrão que chamamos comumente soneto italiano ou petrarquiano.
Estrutura do poema
Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem é um soneto, portanto, possui 14 versos divididos em 4 estrofes, sendo elas duas quadras e dois tercetos.
As quadras apresentam rimas que chamamos enlaçadas, ou seja, rimam em parelha dois versos entre dois outros que também rimam, conforme o esquema abba.
Já os tercetos apresentam rimas que chamamos alternadas, cruzadas ou entrelaçadas, isto é, são rimas que se alternam, conforme o esquema cdc dcd.
Quanto ao ritmo, todos os versos apresentam acentuação na sexta sílaba, conforme o padrão que chamamos decassílabo heroico; exceção feita ao primeiro verso, que é um verso sáfico (variação comum em decassílabos italianos).
Sentido do poema
Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem é um soneto que explora a ambiguidade dos sentimentos provocados pelo amor.
Tal abordagem é frequente na poesia e, aqui, vemos um trabalho criativo de antíteses e paradoxos, assim como já verificamos em outras ocasiões.
Assim começa o poema:
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:
Já nesta estrofe, vemos a contraposição dos elementos que serão simbolicamente trabalhados em todo o poema: a água (pranto) e o fogo (ardor).
Naturalmente, o fogo simboliza a paixão abordada pelo eu lírico, e aparece no poema sobre variadas formas: “ardor”, “incêndio”, “abrasas”, “chamas”.
Já a água criativamente também simboliza a mesma paixão, mas em sua outra face, sua face fria, representada pelo pranto derramado e aparecendo em termos como “pranto”, “mares de água”, “rio de neve” e “cristais”.
Quer o eu lírico, ao trabalhar estes contrastes, expor as contradições que experimenta o apaixonado, evidenciando que este transita entre extremos do sentimento, ora gélido como a neve, ora ardente como o fogo.
Tu, que em um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo em cristais aprisionado;
Quando cristal em chamas derretido.
Aqui, para além da exposição de novas antíteses, percebemos que o eu lírico passa a direcionar-se a um interlocutor (“Tu”…): tal interlocutor é o próprio sentimento amoroso, a própria paixão que experimenta o apaixonado.
Portanto, descobrimos que a estrofe anterior foi uma caracterização deste interlocutor ao qual, agora, o discurso é diretamente direcionado.
Esta paixão, pois, é caracterizada como algo que “abrasa” ocultamente no peito, mas que corre vistosamente sob a forma de pranto “em um rosto”.
Em seguida, este sentimento é caracterizado como absolutamente ambíguo e instável, uma vez que, quando manifesta sob a forma de “fogo”, vê-se “aprisionado em cristais”; já quando sob a forma de “cristal”, vê-se “em chamas derretido”.
Finalmente, vêm os tercetos:
Se és fogo como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
Após a exposição de suas características, o eu lírico expõe a sua perplexidade e confusão para com aquilo que analisa.
Porém, neste ponto do poema, há uma inversão nas qualidades anteriormente apresentadas, e o eu lírico, através de questionamentos, mostra o caráter irracional da paixão.
Diferentemente das estrofes anteriores, que davam a imaginar o elemento “fogo” sempre sob a forma “ardente”, e o elemento “água” sempre sob a forma “fria”, aqui vemos ambos misturados em suas manifestações.
Após expressar que não compreende como um fogo pode “passar brandamente” e uma neve “queimar com porfia”, o eu lírico conclui, com alguma ironia, que isso ocorre porque o Amor quis ser prudente, temperando a própria “tirania”.
Os dois versos que encerram o poema são muito interessantes, e podem ser interpretados de diferentes maneiras.
A princípio, poderíamos dizer que “neve ardente” poderia representar uma frieza, ou uma ausência que arde intensamente; já “chama fria” poderia simbolizar uma paixão controlada, um sentimento que “não queima” ou uma presença fria.
Poderíamos, também, ver “neve ardente” como o desinteresse que arde, e “chama fria” como o amor que é frio por não ser correspondido.
Assim, Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem é um poema que aborda as contradições experimentadas por aquele que ama.
Sobre Gregório de Matos
Gregório de Matos Guerra nasceu, em Salvador (BA), em 23 de dezembro de 1636.
Filho de um nobre português, pertencia a uma família abastada.
Estudou no Colégio dos Jesuítas, na Bahia, em seguida partindo a Portugal, onde formou-se em direito em Coimbra.
Em 1663, foi nomeado juiz de fora de Alcácer do Sal; em 1672, foi-lhe outorgado o cargo de procurador.
Retornou ao Brasil em 1679, onde exerceu as funções de vigário-geral e tesoureiro-mor, sendo posteriormente destituído dos cargos por recusar-se a usar a batina e não aceitar outras imposições das ordens maiores.
Adquiriu fama por satirizar os costumes de sua época e, graças a sua ousadia em criticar a Igreja Católica, atacando por vezes padres e freiras, foi alcunhado Boca do Inferno ou Boca de Brasa.
Em 1694, foi condenado ao degredo e deportado para Angola, em razão das inimizades que seus poemas lhe conferiram.
Faleceu em Recife, em 26 de novembro de 1696.
Abaixo algumas linhas de Francisco Adolfo de Varnhagen sobre a vida e a personalidade de Gregório de Matos:
A vida do primeiro (Gregório de Matos), que faleceu em 1696, é como a do Castelhano Quevedo, a quem ele quis imitar e muita vez até copia, um tecido de anedotas cômicas e chistosas: era, mais que satírico, mordaz e de caráter extravagante. Deixou-nos muitos versos, que servem a dar ideia da vida do seu tempo na Bahia; mas infelizmente muitas vezes há neles mais chocarrices e indecências que estro. Gregório de Matos não soube ser útil na terra. Acaso desconhecia que a missão de todo o homem, a quem Deus enobreceu com talentos e com gênio, consiste em procurar melhorar quanto possível a multidão. E é certo que ninguém pode nesta (por via de regra não pensante) exercer mais influência do que o poeta, que a um tempo é, com a palavra, arquiteto, músico e pintor; pois constrói, serve-se de sons harmoniosos, e pinta.
Obras de Gregório de Matos
Gregório de Matos não deixou manuscritos, nem publicou obras em vida.
Todos os seus textos que conhecemos são frutos de compilações feitas por seus admiradores antigos e modernos.
Quando em vida, os poemas de Gregório de Matos eram disponibilizados o mais das vezes em panfletos, que circulavam de mão em mão pela cidade.
Tais panfletos eram reunidos por colecionadores e costurados em um tipo de documento conhecido como códice e são, hoje, nossa fonte primária para a obra de Gregório de Matos.
Há mais de 700 textos atribuídos a Gregório de Matos e, em razão do que ficou dito, é difícil ter certeza de sua autoria.
Conclusão
Ficamos por aqui!
Esperamos que você tenha gostado de nossa análise do poema Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem, de Gregório de Matos.
Se você curtiu esse conteúdo, não deixe de conferir o que escrevemos sobre Minha terra, de Manuel Bandeira.
Um abraço e até a próxima!